Gilberto Dimenstein hoje e amanhã
Há pouco soube da morte de Gilberto Dimenstein. Triste num momento em que rogamos humanidade. Lembro-me de recortar seus artigos publicados na Folha de S.Paulo e arquivá-los numa pasta para reler várias vezes pensando na redação do vestibular. O tema dos exames era, e imagino continua sendo, quase sempre um assunto relevante à realidade brasileira; e Dimenstein sempre se pautou por fazer jornalismo relevante, capaz de transformar a vida das pessoas. Era assim na Folha e depois no seu Catraca Livre. Fui então ao arquivo do jornal, onde ele trabalhou 28 anos, até 2013, refrescar-me com assuntos que embora tenham sido tratados há anos, poderiam ser coluna do periódico de amanhã. Compartilho cinco deles:
1. A culpa é da Ivete Sangalo?
Em janeiro de 2013, Dimenstein escreveu sobre a apresentação da baiana para inaugurar um hospital público no Ceará. Assim como hoje, com Bolsonaro e a onda de protestos contra o racismo no mundo, o Brasil cobrava uma posição de Ivete Sangalo, mas Dimenstein lembrava que importante mesmo era entender as atitudes dos políticos.
O artigo…
Ivete Sangalo virou involuntariamente uma das vítimas de um escândalo: ela ganhou R$ 650 mil para fazer um show na inauguração de um hospital público no interior do Ceará. Obviamente o dinheiro seria melhor aplicado no hospital.
Ela não tem culpa de nada, apenas cobrou seu cachê de mercado –e um governo perdulário pagou, interessado em oferecer circo. Não tem culpa, mas ela vira um dos símbolos daquilo para o que sempre tento chamar atenção: perto do desperdício, devidamente legal, a corrupção é um problema menor.
O fato de ser legal diminui o impacto moral. Mas não o impacto no bolso do contribuinte. Vejam agora com a mudança dos prefeitos quantas obras são descontinuadas, programas suspensos, falta de coordenação entre políticas públicas, inchaço na folha de pagamento, ineficiência dos servidores, obras desnecessárias, lentidão burocrática.
Atentem sobre as verbas de publicidade que são gastas apenas para promover os governantes e são muito, mas muito mais altas do que as gastas com Ivete Sangalo.
E assim vamos: pagando quatro meses do ano de nossos salários para manter os governos.
2. Mais médicos cubanos, por favor
Assim como agora durante a pandemia, a contratação de médicos cubanos era criticada em 2013. Dimenstein lembra que o corporativismo médico é antigo.
O artigo…
Quem não se impressiona com a histeria corporativista promovida por entidades médicas, embalada por questões partidárias e ideológicas, vai, aos poucos, percebendo o seguinte: todos saem ganhando com a vinda dos médicos cubanos.
Esclareço que não tenho nenhuma simpatia pelo regime cubano – e nem acredito que vamos resolver a questão da saúde como a chegada desses profissionais.
Não devemos cair nem na histeria da oposição nem no marketing oficial.
Dito isso, como mostrou a Folha, os cubanos vão ganhar aqui cerca de 40 vezes o que ganham lá, melhorando sua qualidade de vida.
Poderia ser melhor? Eles podiam ficar com todo o dinheiro? Poderiam. Mas daí a falar em escravos, como fizeram muitos médicos, apenas se explica pela histeria. E uma preocupação próxima de zero a saúde nas comunidades sem médicos.
Note-se que esse acordo foi feito com a Organização Mundial de Saúde ( via seu braço para a América Latina), seguindo padrões internacionais. Reportagem do jornal de “O Estado de S. Paulo” mostra que, no exame de certificação do diploma ( Revalida), os médicos formados na Escola Latino-Americana de Cuba ( Elam) se destacaram.
Não vi nenhuma informação consistente sobre um suposto despreparo dos médicos que vêm de fora, em particular os cubanos. A Folha, em outra reportagem, mostra que a formação deles é particularmente interessante para áreas degradadas, com foco em saúde da família.
Portanto, o país sai ganhando com um profissional preparado para ocupar uma vaga recusada pelos brasileiros.E saem ganhando os médicos estrangeiros que melhoram sua condição de vida. Saúde é coisa muita séria para ser tratada pelo estetoscópio da ideologia.
3.Pendure Drauzio Varela na parede
Ao que tudo indica, com justiça, Dráuzio Varela é um dos homens mais admirados do Brasil. Em meio à pandemia, seu jeito tranquilo e confiável de compartilhar informação traz um pouco de conforto nos momentos mais difíceis. Em 2020, o dr. Dráuzio, que parece o médico de cada um de nós, também contribuiu com o país nos contando sobre sofrimentos de pessoas trans no Fantástico e, nesses dias, mostrando “A situação é dramática” do covid em aldeias na Amazônia. Muito antes de tudo isso, em 2013, Gilberto Dimnestein já dava outros bons motivos para pendurar o médico na parede
O artigo…
Neste ano, li apenas um artigo de um colunista brasileiro que mereceria (e deveria) ser pendurado na parede.
É daqueles textos que conseguem resumir, com extraordinária força de dados e simplicidade, um tema pouco comentado mais fundamental para o desenvolvimento de uma nação.
Se estivesse na parede de quem tem algum poder decisão, a começar os eleitores, o Brasil seria melhor, com estudantes e trabalhadores mais preparados.
A partir de pesquisas internacionais, Drauzio relaciona uma série de efeitos no cérebro de um indivíduo, quando a criança, na fase de zero a três anos, não é estimulada ou não tem a saúde cuidada. Um efeito, por exemplo: QI.
Por favor, leia (e passe adiante) o artigo
4. A ignorância não tem preço
Escrito durante o calor dos protestos contra o aumento do preço das passagens de ônibus em São Paulo que culminaram com o impeachment de Dilma Rousseff, o artigo tem tudo a ver com esses sombrios tempos de Bolsonaro
O artigo…
Para todo esse movimento em torno da redução da tarifa dos transportes públicos não se transformar numa bobagem passageira, existe um debate sério a ser realizado. É uma discussão ainda superficial -e deve envolver toda a sociedade, não só os manifestantes.
Suponha-se que os governantes topem reduzir as tarifas. Pergunta óbvia: qual seria o custo? Segunda pergunta óbvia: de onde sairia o dinheiro? Poderia sair da educação ou da saúde? Talvez da redução da dívida?
A pergunta essencial: quais devem ser as prioridades de uma cidade? O orçamento deve refletir essas prioridades e cortar o que é desnecessário.
A verdade é que o cidadão não acompanha nem sabe como é gasto seu dinheiro. Nem vê os lobbies por trás das decisões. Quanta se paga pelos lobbies das corporações de funcionários públicos?
Nem sabe que paga quatro meses por ano de salário apenas para manter o poder público. No fundo, é como se não fosse nosso dinheiro.
Quando se gastam bilhões para pagar estádios de futebol, o dinheiro saiu de algum lugar. O que se deixou de fazer?
Não existe verdadeira cidadania sem que todos saibam como se realiza um orçamento. Nem imaginam que o pior do país não é a corrupção, mas o desperdício legalizado.
Por isso, defendo que orçamento deveria ser matéria obrigatória na escolas -talvez um bom jeito de ensinar assuntos como matemática e estudos sociais.
Vivemos na ignorância generalizada da cidadania.
5. ‘Aquele Gilberto Dimenstein de antes do câncer morreu’
Escrito 5 meses antes dele morrer, um maravilhoso artigo sobre sentir-se vivo tendo câncer. Para ler e reler.
O artigo…
Sonhei com uma mulher dizendo que eu estava com câncer. Sou super-racional, acredito na ciência, na lógica. Mas foi um sonho tão claro que fiquei encasquetado.
Fui aos médicos, fiz colonoscopia, endoscopia, ultrassonografia, não achavam nada, mas eu continuava impressionado. Um gastroenterologista pediu uma tomografia, “só para tirar a dúvida”.
Fui às 22h, o resultado começou a demorar. Veio um enfermeiro e perguntou se não sentia muita dor, porque tinha pancreatite, mas eu não sentia nada. Não sentia nada. Procurei na internet: pancreatite dá em quem bebe —sou abstêmio há seis anos— e em quem tem vesícula —que eu já tinha tirado. Era câncer.
No dia seguinte, já estava no hospital. Tirei o tumor bem no comecinho, o que aparentemente era boa notícia.
Mas, passadas três semanas, ele estava no fígado. Fizemos quimioterapia para operar, mas, em vez de parar, o tumor cresceu. Passei quatro meses de tantas más notícias… muita febre todo dia, comecei a já me preparar para a despedida. Foi o meu período pessimista.
Hoje —é até difícil falar isso— estou vivendo o momento mais feliz da minha vida. Aquele Gilberto Dimenstein antes do câncer morreu. Nasceu outro.
Câncer é algo que não desejo para ninguém, mas desejo para todos a profundidade que você ganha ao se deparar com o limite da vida. Não queria ter ido embora sem essa experiência.
Grande parte da minha vida foi marcada pelo culto a bobagens: ganhar prêmio, assinar matéria na capa, o tempo todo pensando no próximo furo. É como se estivesse passando por um lugar lindo num trem em alta velocidade, vendo tudo borrado.
Quando você tem um câncer (ainda mais como o meu, de metástase e de pâncreas, um tipo muito agressivo), não há alternativa. Ou vive o presente ou sua vida vira um inferno.
E aí começam a aparecer coisas incríveis. Gosto de andar de bicicleta, e comecei a sentir o vento no rosto, como se estivesse sendo beijado. Você vê seu neto deitado com você [Dimenstein tem um neto de dois anos e espera o segundo para daqui a seis meses]. Acorda com os bem-te-vis e escuta os bem-te-vis.
Falar em sentidos é importante, porque meu tratamento tira o gosto, até a água fica ruim. Com o tratamento, também acaba a vida sexual; você fica impotente.
É uma fase de muitos pesadelos, que melhoram com o canabidiol [composto químico derivado da maconha, liberado para uso medicinal].
Tudo isso poderia fazer um cara superinfeliz. Mas as relações emocionais se sofisticam. Descobri só agora a profundidade da relação homem-mulher. Você está com enjoos, dores não apenas físicas, e a pessoa do seu lado o tempo todo. Não conhecia essa cumplicidade nesse nível.
Nós vivemos nos meios digitais a era da indelicadeza, 500 mil pessoas criticando. Eu acabei entrando no mundo das gentilezas. Cada pessoa tem uma palavra, um chá, uma dica de oração, um olhar gentil. O outro mundo vai ficando ridículo.
Com ou sem câncer vamos todos morrer, e se pudermos antecipar essa sensação, vamos evitar várias bobagens. A clareza maior da morte é uma dádiva. Não é o fim, mas um começo.
Pode ser o começo de um belo fim de vida, viver esses momentos com a família, ou um pit stop para voltar melhor. O cara tem que ser muito, muito, muito idiota para não voltar melhor.
Não é que eu ache que morrer é bom, mas você começa a questionar por que existe, e a conclusão é que, se não podemos escolher como entramos na vida, podemos decidir como sair dela.
Quando o médico me disse que eu estava com câncer, passou um dia, dois, três, e não tive medo. Só temia o impacto da minha morte nos outros. Não me senti desesperado. Nada, nada, nada. Até me espantei comigo mesmo.
Em inglês se chama “surrender” [render-se]. Você não está mais no comando, e isso é motivo de alívio. De felicidade, até.
Descobri que meu pavor era passar a vida sem propósito. Olhei para trás, e, apesar de todas as minhas delinquências —que não foram poucas—, acho que fiz mais bem que mal. Mudei minha carreira para fazer um jornalismo que não é de filantropia nem altruísmo, mas de empoderamento, de usar a comunicação para promover causas.
Não inventei nada, o comunicador não faz o vinho. Mas tira a rolha.
Acabei sendo obrigado a deixar de ser aquele jornalista racional, imparcial. Deixei de ser um espectador e passei a ser torcedor. Você vira um eunuco como jornalista, porque passa a querer dar só boa notícia.
Já antes do câncer tinha começado minha “quimioterapia social”, na Orquestra Sinfônica de Heliópolis [de cujo conselho Dimenstein é presidente], que esteve perto de fechar. Em nenhum momento neste ano parei de trabalhar, arrecadar fundos, promover esse e outros projetos que acompanho. Não é bondade, é conexão com a vida.
O evangelho segundo são João diz “No princípio era o verbo”. É a palavra que gera o poder, e nós, comunicadores, trabalhamos com isso, podemos fazer as pessoas poderosas trabalharem juntas.
Hoje há um enorme desperdício. Há um ditado árabe maravilhoso, “gavião não voa em bando”, ainda mais perfeito em inglês, “eagles don’t fly together” —eagles tem o mesmo som de egos. Cada um quer ter seu legado, sua placa, seu projeto. Um secretário não trabalha com outro, a prefeitura não trabalha com o estado, um dinheiro enorme sai pelo ralo, sem meta, sem avaliação, sem trabalho articulado, uma catástrofe.
O mundo é como um corpo humano. Há pessoas que espalham infecções, se xingam, se odeiam. [O presidente dos EUA, Donald] Trump e [o presidente brasileiro, Jair] Bolsonaro não criaram isso, mas sintetizam essa cultura da infecção, do ódio, do confronto. E há os glóbulos brancos, as pessoas que não deixam o mundo acabar, que inventaram a anestesia, o antibiótico, descobriram a hélice dupla do DNA.
Meu tumor passou por análise genética —recebi o resultado ontem [sexta, 27]—, e sou um caso de 1% cuja mutação talvez tenha um tratamento promissor. Em ratos, eliminaram o câncer de pâncreas, e estão começando a testar em humanos, procurando a dose certa. Já me dispus a fazer parte dos testes no Brasil.
É até meio canalha, mas penso “será que eu vou ajudar a encontrar a cura?”. Para um jornalista que gosta de furos, você se transformar num furo de si mesmo é incrível, né? Mas para ajudar os outros.
Voltei a ficar otimista. Ganhei da minha mulher dois ingressos para ver o [músico] Bobby McFerrin nos EUA, em maio. Já estou com planos para o ano que vem. Você volta a ter projetos, é a vida voltando a circular. Eu acho que tenho muita chance, muita chance.
Vida após a morte? Se for igual a esta, prefiro que não exista. Se eu acordasse e estivessem lá Trump, Bolsonaro, [primeiro-ministro da Hungria, Viktor] Orbán, não sei se queria, não [risos].