Sabe qual a palavra mais alemã que existe? Descubra e entende como ela define a alma do país

Quer pegar uma lata de spray e marcar o Muro de Berlim? Há um espaço designado para isso

Se a Alemanha fosse uma marca, seria reconhecida por ter produtos de boa qualidade. Como os carros da Mercedes-Benz, as geladeiras da Bosch, os anti-mosquitos da Bayer, ou a gestão da primeira-ministra Angela Merkel para afrontar a pandememia do novo coronavírus.

Mas o que que explica que o país unificado em 1871, arrasado e dividido em dois em 1949, após o fim da Segunda Guerra, e reunificado há apenas 30 anos, seja hoje a quarta maior economia do mundo, apesar de ser apenas a 19ª população do planeta? Seguramente haverá mais de uma explicação, mas uma reportagem publicada hoje pela BBC dá fortes indícios. Abaixo, os trechos que achei mais interessantes.


No trem de alta velocidade que desliza suavemente de Berlim para Düsseldorf, um jovem começou a conversar comigo (o jornalista). E me perguntou: “Quais são as diferenças culturais que você notou entre alemães e americanos?” Como se estivesse em uma classe prática, uma mulher de meia-idade nos interrompeu: “Shhhhhh!” com o indicador contra os lábios. Ela apontou para a placa de um celular com uma cruz, indicando que estávamos no Ruhebereich, o vagão silencioso do trem. “Você deve manter o silêncio”, disse ela, antes de voltar ao seu lugar. “Isso”, eu disse ao homem sentado ao meu lado. “Isso é diferente.”

Na Alemanha, há uma famosa expressão, “Ordnung muss sein” (“deve haver ordem”). De fato, esse provérbio está tão arraigado na psique alemã que se tornou um clichê cultural local, estejam onde estejam; e um modo de vida para eles dentro de casa. “Ordnung está no abastecimento de água”, conta Joachim Krüger, professor alemão de psicologia na Brown University. “Toda criança aprende esse ditado no contexto de limpar seu quarto”. Devem entender dede cedo que a ordem, como a água, são imprescindíveis.

Aparentemente, “Ordnung muss sein” parece ser o fundamento da conduta pessoal e social alemã. Mas, estereótipos à parte, a Alemanha é realmente “ordeira”?

Como muitos dos conceitos da alma “alemã”, a resposta remete a Martinho Lutero. Além de mudar para sempre a forma a culto na Alemanha, muitas das preferências pessoais dos humildes reformistas (de seu amor pela cerveja, pelos livros e pelo design severo) continuaram a moldar a cultura do país nos últimos 500 anos. De fato, de acordo com o volume 67 de seu texto de Sämmtliche Werke, foi o próprio monge quem parece ter escrito primeiro a iteração mais antiga da expressão.

A idéia alemã de que “deve haver ordem” remonta a aproximadamente 500 anos com Martinho Lutero

“Lutero pediu obediência à autoridade em seus escritos teológicos. Mas isso não é idêntico a … a expressão ‘Ordnung muss sein’, que não é necessariamente voltada para a ordem do estado, mas para a ordem na vida privada de alguém”, explica Wolfram Pyta, diretor do Departamento de História Moderna da Universidade de Stuttgart.

O certo é que para os alemães, “a ordem é considerada um valor tão importante quanto o cumprimento de obrigações, a pontualidade, o trabalho duro e a honestidade. Ninguém precisa falar sobre as regras, porque se supõe que todos já as conhecem”, diz outro especialista em cultura alemã que ajuda empresas internacionais a entender a mentalidade do país.

Segundo outro dito local, “Ordnung ist das halbe Leben” (“a ordem é metade da vida”). Por isso, os alemães não têm vergonha de apontar quando outros violam as regras. “Se fizer algo errado, estranhos vão te repreender, porque há uma expectativa de que todos sigam as regras”.

Para ilustrar, o repórter contou uma história pessoal: um vizinho meu compartilhou um vídeo de como desconstruir corretamente uma caixa de papelão para a lixeira no bate-papo do meu prédio no whatsapp. “Em cinco segundos, uma caixa é feita pequena. Se eu posso fazer, todos vocês também podem. A mensagem foi assinada com um beijo em formato de emoji”, disse o repórter.

E havia mais exemplos: “Se você parecer atordoado na rua, um transeunte desconhecido pode perguntar: “Alles in Ordnung?”. Em portugês, significa “Você está bem?”, mas, literalmente, a pergunta é: “Está tudo em ordem?”. Se tudo estiver como deveria, então você está “em Ordnung”.

A palavra ordem é tão simbólica que está até costurada nos uniformes dos homens e mulheres que trabalham para o Ordnungsamt (Escritório de Ordem Pública da Alemanha). Esta é essencialmente uma força policial especial que se concentra em delitos, que na Alemanha inclui tocar música alta durante horas tranquilas, violações de estacionamento e impor quando e por quanto tempo seu cão pode latir sem o vizinho ter direito de reclamar (10 minutos por vez e não mais de 30 minutos por dia). Se você for pego do lado errado do Ordnungsamt, receberá um Ordnungswidrigkeit – um delito.

Para mim, havia algo contraditório sobre a ordem ser a palavra-chave num país cuja capital, Berlim, é considerada uma das mais livres do planeta. Como diz o repórter da BBC, pessoas de todo o mundo ainda se mudam para lá precisamente para se libertar de planos rígidos de vida e serem quem quiserem ser sem um olhar crítico. Mas ele lembra que mesmo em uma cidade lendária por sua tolerância libertina e espírito anarquista, existem regras rígidas e não escritas. Quer pegar tinta spray e marcar parte do Muro de Berlim? Há uma seção designada onde você pode fazer isso. Quer andar nu pelas ruas? Existem faixas não marcadas do parque Tiergarten central da cidade e lagos ao redor, onde as roupas são severamente desaprovadas. Quer usar drogas e fazer sexo com estranhos? Ninguém fica de olho na maioria dos clubes de Berlim, desde que você faça na sala certa.

Obviamente, cada um desses exemplos ainda se encaixa perfeitamente no senso de ordem específico da Alemanha: trata-se menos de proibir certas coisas e mais de garantir que você as esteja executando no local apropriado e designado. Converse suavemente no vagão silencioso de um trem e é provável que você seja repreendido. Mas beba uma cerveja no metrô de Berlim e ninguém dirá uma palavra por causa de outra regra não escrita de que beber em público – e até mesmo beber em transporte público – é geralmente considerado aceitável.

No geral, a ordem alemã é bastante pragmática. “Ordnung muss sein” não significa construir uma realidade falsa. Os alemães antecipam cenários para impedir que o pior aconteça, como o Kurzarbeit (trabalho curto), um programa que permite às empresas diminuir as horas de seus funcionários em tempos de crise (como o colapso financeiro de 2008 e a pandemia de coronavírus em andamento), obrigando o governo a pagar 60% do salário restante para evitar o desemprego em massa.

Disciplinado, o repórter terminha assim a reportagem. “Agora, se você me dá licença, que tenho algumas caixas de papelão para diminuir, e também que garantir que meu cachorro não esteja latindo mais do que o limite diário previsto.

E você, que acha da cultura alemã da ordem? A ser seguida ou exagerada?

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *