Em Cuba, onde a internet é cara e o acesso ainda é restrito a locais públicos, a população deu um jeitinho para conseguir o seu próprio serviço de entretenimento sob demanda e ver filmes, séries e até novelas do mundo todo. É uma espécie de Netflix offline chamado “paquete semanal” (pacote semanal), em que o cliente recarrega semanalmente o seu pendrive nos postos de “venda”, seja uma loja ou até no vizinho.
O “paquete” pode ser conseguido de várias formas diferentes, mas o processo é normalmente o mesmo: o cliente leva o seu pendrive, HD externo ou qualquer meio de armazenar conteúdo em grande quantidade e faz o download do que é oferecido naquela semana (ou de parte dele, dependendo de quanto cabe no pendrive). O material pode chegar a 1 terabyte.
O valor cobrado pela “recarga” é de CUC 2 (equivalente a US$ 2, cerca de R$ 6,50). Considerando que a internet em Cuba custa o mesmo valor por uma hora de uso –na rua, com sinal de wi-fi lento–, o preço pago pelo “Netflix improvisado” é relativamente barato. Para efeito de comparação, o salário mínimo em Cuba gira em torno de CUC 30 –e é por isso que todas as famílias buscam uma forma de complementar a renda mensal, inclusive com a venda do próprio “paquete”.
Por conta do embargo econômico imposto pelos EUA, a pirataria sempre existiu em Cuba. A Netflix até oferece o seu serviço em Cuba, mas a velocidade lenta e o alto custo da internet no país torna impossível o consumo de conteúdo e até de downloads mais pesados.
Hoje é assim que os cubanos têm acesso às superproduções de Hollywood, às novelas brasileiras e a todo tipo de material cultural que é restrito pelo governo cubano –sejam músicas ou até revistas. Mas existem regras impostas pelos curadores do “paquete”, quem cria a programação semanal oferecida: ele não oferece pornografia ou conteúdo político.
A origem do pacote
O “paquete” passa de mão em mão em Cuba, e atravessa o país em carros, ônibus e avião. Ninguém sabe ao certo como o conteúdo é baixado da internet, mas as apostas são de que pelo menos parte seja feito nos EUA. Ainda assim, os distribuidores precisam ter computadores potentes o suficiente para fazer a transferência de dados para os pendrives –e isso pode levar horas, já que o “paquete” costuma ter até 1 terabyte.
“Não sabemos se o download é feito em Cuba, se o conteúdo é trazido dos EUA em hard drives ou uma combinação dos dois. O que se sabe é que para baixar esta quantidade de dados em Cuba, seria necessário ter a assistência do governo e da ETECSA [a empresa de telecomunicações estatal]”, afirma em entrevista ao UOL Larry Press, professor da California State University Dominguez Hills, que estuda a internet em Cuba.
Uma pista de como o “paquete” é produzido está nas declarações dadas à imprensa por Elio Hector Lopez, conhecido como El Transportador. Ele se identifica nas redes sociais como “produtor e promotor de música cubana”, e relatou em entrevista à revista americana Fast Company ter começado com o que hoje se transformou no “paquete” enquanto trabalhava em um banco, onde aproveitava a internet do lugar para fazer o download de músicas. Tudo era distribuído para DJs, mas o negócio ganhou fama.
Em parceria com outras pessoas com acesso à internet que faziam o mesmo –mas baixavam jogos, filmes, séries– foram montados os primeiros pacotes colaborativos. Mas eles não são os únicos. Hoje, o “paquete” é repassado aos “vendedores” por um valor não identificado –acredita-se que por mais de CUC 20.
A equatoriana Dennisse Calle, que estudou a distribuição e o conteúdo do “paquete” em Havana, chegou a comprar o “paquete” vendido por diferentes distribuidores da capital cubana. Segundo ela, o conteúdo muda pouco de um fornecedor para o outro. Ela constatou ainda que existem fornecedores que entregam o “Netflix offline” como delivery, porta a porta; outros têm uma sede fixa, e trabalham com a licença do governo –mas para outros tipos de comércio, como a venda de CDs.
Mas o que tem no “paquete” de 1 terabyte?
Imagine que, ao abrir o pendrive, seja possível acessar dezenas de pastas. Não há apenas filmes, seriados e novelas como nos serviços de entretenimento por demanda. O “paquete” traz ainda aplicativos (que funcionam offline), programas de computador, revistas –importadas e nacionais, que publicam conteúdo sem autorização do governo e até propaganda de estabelecimentos locais.
De acordo com Dennisse, que analisou diferentes “paquetes” para comparação, um terço do conteúdo oferecido semanalmente é de programação de TV; filmes representariam apenas 2% do material. Outros 29% são de músicas. O restante são os softwares, aplicativos, publicações e até propagandas.
As novelas, que têm um fã clube tradicional em Cuba, são a grande parte do conteúdo do “paquete”. E não pense que há apenas produções americanas: de todo material copiado dos canais de TV, 57% vêm dos EUA (principalmente dos canais voltados para o público latino); 15% vêm de países latino-americanos, como Brasil, Argentina e Colômbia; 13%, do México; o restante, de países como Reino Unido, Turquia, Espanha e até do Japão.
Entre as publicações, muitas revistas em inglês e em espanhol são escaneadas –algumas já antigas– de fofocas, ciência, tecnologia, política internacional etc. Algumas são nacionais, produzidas de forma ilegal, são distribuídas somente pelo “paquete” (e pela internet).
O “paquete” traz até uma versão offline de um site de anúncios de compra e venda de produtos e serviços. Você pode acessar o Revolico de qualquer parte do mundo, já que ele está disponível online. Mas para os usuários do pacote, o Revolico funciona como uma espécie de banco de dados de anúncios offline atualizado com a próxima versão do “paquete”.
Ele tem de tudo: peça de computador, casa, carro, CD, ofertas de emprego, móveis, roupas e propaganda de cabeleireiro, relojoeiro, academia de ginástica –a lista é gigantesca.
“O ‘paquete’ é uma nova alternativa para a televisão cubana que, mesmo custando CUC 2 por semana, é acessível, já que muitas pessoas o compartilham com amigos, parentes e colegas de trabalho”, diz Dennisse em seu estudo, realizado na Universidade de Princeton, nos EUA.
Ilegal, mas tolerado
Encontrar o “paquete semanal” em Havana não é difícil. Ainda que ele seja completamente ilegal, desde o download e os direitos autorais até a distribuição, o governo faz vistas grossas para o processo completo que envolve a produção e a venda.
Na opinião da especialista, a grande dificuldade para controlar o “paquete” é que ele circula de formas rápidas e vem de muitas fontes. “Só posso supor que o governo não tem o poder para apreender todos os flashdrives, computadores, laptops e unidades de discos”, afirma.
“Também não acho que o governo se sente ameaçado por ele. O paquete deve ser visto como um passatempo para a população, e não uma forma de ataque”, diz ela. “O objetivo principal não é ser subversivo ou contrarrevolucionário, é somente a diversão”, afirma.
Larry Press, da Universidade do Estado da Califórnia, lembra que o paquete ajuda a economia cubana ao assegurar algum tipo de emprego privado. É impossível saber quantas pessoas trabalham na venda, mas existe a possibilidade de que ele seja o principal empregador não-estatal em Cuba.
“Além disso, ele também reduz a demanda por conexão de internet, uma vez que as pessoas obtêm o material que faria o download pelo ‘paquete'”, aposta Press. Para o professor, ele também reduz a necessidade de infraestrutura, fornecendo vídeos, por exemplo, sem utilizar recursos da web.
“O ‘paquete’ só é capaz de existir por causa de Estados que controlam firmemente a televisão e não tornam a internet disponível a todos”, diz Dennisse. Para ela, o “paquete” em si é uma representação de uma empresa quase capitalista, já que proporciona tantas coisas à população cubana por um preço extremamente baixo.