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Com internet lenta, cara e restrita, cubanos assistem a “Netflix offline”

Frase símbolo da Revolução Cubana, "Hasta la Victoria Siempre" também revela capacidade da população locam em superar adversidades
Frase símbolo da Revolução Cubana, “Hasta la Victoria Siempre” também revela capacidade da população locam em superar adversidades (foto: Marceana Terra)
 O Andar Andar reproduz reportagem do UOL:
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Em Cuba, onde a internet é cara e o acesso ainda é restrito a locais públicos, a população deu um jeitinho para conseguir o seu próprio serviço de entretenimento sob demanda e ver filmes, séries e até novelas do mundo todo. É uma espécie de Netflix offline chamado “paquete semanal” (pacote semanal), em que o cliente recarrega semanalmente o seu pendrive nos postos de “venda”, seja uma loja ou até no vizinho.

O “paquete” pode ser conseguido de várias formas diferentes, mas o processo é normalmente o mesmo: o cliente leva o seu pendrive, HD externo ou qualquer meio de armazenar conteúdo em grande quantidade e faz o download do que é oferecido naquela semana (ou de parte dele, dependendo de quanto cabe no pendrive). O material pode chegar a 1 terabyte.

Pen drives usados para copiar conteúdo (Jose Goitia/The New York Times)

O valor cobrado pela “recarga” é de CUC 2 (equivalente a US$ 2, cerca de R$ 6,50). Considerando que a internet em Cuba custa o mesmo valor por uma hora de uso –na rua, com sinal de wi-fi lento–, o preço pago pelo “Netflix improvisado” é relativamente barato. Para efeito de comparação, o salário mínimo em Cuba gira em torno de CUC 30 –e é por isso que todas as famílias buscam uma forma de complementar a renda mensal, inclusive com a venda do próprio “paquete”.

Por conta do embargo econômico imposto pelos EUA, a pirataria sempre existiu em Cuba. A Netflix até oferece o seu serviço em Cuba, mas a velocidade lenta e o alto custo da internet no país torna impossível o consumo de conteúdo e até de downloads mais pesados.

Hoje é assim que os cubanos têm acesso às superproduções de Hollywood, às novelas brasileiras e a todo tipo de material cultural que é restrito pelo governo cubano –sejam músicas ou até revistas. Mas existem regras impostas pelos curadores do “paquete”, quem cria a programação semanal oferecida: ele não oferece pornografia ou conteúdo político.

Clientes escolhem títulos em ponto de venda em Havana (Desmond Boylan/Reuters)

A origem do pacote

O “paquete” passa de mão em mão em Cuba, e atravessa o país em carros, ônibus e avião. Ninguém sabe ao certo como o conteúdo é baixado da internet, mas as apostas são de que pelo menos parte seja feito nos EUA. Ainda assim, os distribuidores precisam ter computadores potentes o suficiente para fazer a transferência de dados para os pendrives –e isso pode levar horas, já que o “paquete” costuma ter até 1 terabyte.

“Não sabemos se o download é feito em Cuba, se o conteúdo é trazido dos EUA em hard drives ou uma combinação dos dois. O que se sabe é que para baixar esta quantidade de dados em Cuba, seria necessário ter a assistência do governo e da ETECSA [a empresa de telecomunicações estatal]”, afirma em entrevista ao UOL Larry Press, professor da California State University Dominguez Hills, que estuda a internet em Cuba.

Uma pista de como o “paquete” é produzido está nas declarações dadas à imprensa por Elio Hector Lopez, conhecido como El Transportador. Ele se identifica nas redes sociais como “produtor e promotor de música cubana”, e relatou em entrevista à revista americana Fast Company ter começado com o que hoje se transformou no “paquete” enquanto trabalhava em um banco, onde aproveitava a internet do lugar para fazer o download de músicas. Tudo era distribuído para DJs, mas o negócio ganhou fama.

Em parceria com outras pessoas com acesso à internet que faziam o mesmo –mas baixavam jogos, filmes, séries– foram montados os primeiros pacotes colaborativos. Mas eles não são os únicos. Hoje, o “paquete” é repassado aos “vendedores” por um valor não identificado –acredita-se que por mais de CUC 20.

A equatoriana Dennisse Calle, que estudou a distribuição e o conteúdo do “paquete” em Havana, chegou a comprar o “paquete” vendido por diferentes distribuidores da capital cubana. Segundo ela, o conteúdo muda pouco de um fornecedor para o outro. Ela constatou ainda que existem fornecedores que entregam o “Netflix offline” como delivery, porta a porta; outros têm uma sede fixa, e trabalham com a licença do governo –mas para outros tipos de comércio, como a venda de CDs.

Mas o que tem no “paquete” de 1 terabyte?

 

Revistas, séries, novels, filmes: pastas de computador mostram diversidade de conteúdo do Netflix offline cubano (Reprodução/ laredcubana.blogspot.com.br)

Imagine que, ao abrir o pendrive, seja possível acessar dezenas de pastas. Não há apenas filmes, seriados e novelas como nos serviços de entretenimento por demanda. O “paquete” traz ainda aplicativos (que funcionam offline), programas de computador, revistas –importadas e nacionais, que publicam conteúdo sem autorização do governo e até propaganda de estabelecimentos locais.

De acordo com Dennisse, que analisou diferentes “paquetes” para comparação, um terço do conteúdo oferecido semanalmente é de programação de TV; filmes representariam apenas 2% do material. Outros 29% são de músicas. O restante são os softwares, aplicativos, publicações e até propagandas.

As novelas, que têm um fã clube tradicional em Cuba, são a grande parte do conteúdo do “paquete”. E não pense que há apenas produções americanas: de todo material copiado dos canais de TV, 57% vêm dos EUA (principalmente dos canais voltados para o público latino); 15% vêm de países latino-americanos, como Brasil, Argentina e Colômbia; 13%, do México; o restante, de países como Reino Unido, Turquia, Espanha e até do Japão.

Entre as publicações, muitas revistas em inglês e em espanhol são escaneadas –algumas já antigas– de fofocas, ciência, tecnologia, política internacional etc. Algumas são nacionais, produzidas de forma ilegal, são distribuídas somente pelo “paquete” (e pela internet).

O “paquete” traz até uma versão offline de um site de anúncios de compra e venda de produtos e serviços. Você pode acessar o Revolico de qualquer parte do mundo, já que ele está disponível online. Mas para os usuários do pacote, o Revolico funciona como uma espécie de banco de dados de anúncios offline atualizado com a próxima versão do “paquete”.

Ele tem de tudo: peça de computador, casa, carro, CD, ofertas de emprego, móveis, roupas e propaganda de cabeleireiro, relojoeiro, academia de ginástica –a lista é gigantesca.

“O ‘paquete’ é uma nova alternativa para a televisão cubana que, mesmo custando CUC 2 por semana, é acessível, já que muitas pessoas o compartilham com amigos, parentes e colegas de trabalho”, diz Dennisse em seu estudo, realizado na Universidade de Princeton, nos EUA.

Mauricio Lima/The New York Times

Vendedores do pacote encontrados facilmente em Havana (Mauricio Lima/The New York Times)

Ilegal, mas tolerado

Encontrar o “paquete semanal” em Havana não é difícil. Ainda que ele seja completamente ilegal, desde o download e os direitos autorais até a distribuição, o governo faz vistas grossas para o processo completo que envolve a produção e a venda.

Na opinião da especialista, a grande dificuldade para controlar o “paquete” é que ele circula de formas rápidas e vem de muitas fontes. “Só posso supor que o governo não tem o poder para apreender todos os flashdrives, computadores, laptops e unidades de discos”, afirma.

“Também não acho que o governo se sente ameaçado por ele. O paquete deve ser visto como um passatempo para a população, e não uma forma de ataque”, diz ela“O objetivo principal não é ser subversivo ou contrarrevolucionário, é somente a diversão”, afirma.

Larry Press, da Universidade do Estado da Califórnia, lembra que o paquete ajuda a economia cubana ao assegurar algum tipo de emprego privado. É impossível saber quantas pessoas trabalham na venda, mas existe a possibilidade de que ele seja o principal empregador não-estatal em Cuba.

“Além disso, ele também reduz a demanda por conexão de internet, uma vez que as pessoas obtêm o material que faria o download pelo ‘paquete'”, aposta Press. Para o professor, ele também reduz a necessidade de infraestrutura, fornecendo vídeos, por exemplo, sem utilizar recursos da web.

“O ‘paquete’ só é capaz de existir por causa de Estados que controlam firmemente a televisão e não tornam a internet disponível a todos”, diz Dennisse. Para ela, o “paquete” em si é uma representação de uma empresa quase capitalista, já que proporciona tantas coisas à população cubana por um preço extremamente baixo.

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