Diários de Caracas [8]: o caos embalado para presente
“É ele. É ele. É ele!!!”. Eu dizia ofegante a um amigo venezuelano enquanto avançava rapidamente por um mar vermelho e barulhento de gente. “Ele ” ficava cada vez mais perto, e quando me dei conta, menos de cinco metros me separava de um dos personagens políticos mais fascinantes desses tempos confusos. Estava cara a cara com Nicolás Maduro, o presidente da República Bolivariana da Venezuela. Era o ápice da minha viagem de uma semana ao país que é hoje uma bomba relógio.
O dia do nosso encontro foi especialmente escolhido: 1.º de maio, dia do Trabalhador. Para o socialista Nicolás Maduro Moro, talvez o dia mais importante do ano. Para mim, depois de viver o 1.º de maio anterior em Moscou, um indício de que tenho um compromisso com o socialismo. Ao menos no 1.º de maio.
Cheguei atrasado. Nicolás havia mudado o local de sua aparição poucas horas antes — por um motivo gravíssimo, mas difícil de saber se verídico — sem avisar. Ainda no carro, preocupado com a hora, ouvi o presidente perguntar aos ouvintes quanto marcavam seus relógios. A platéia, diga-se, não tinha problemas de compreensão; tampouco o presidente dava uma bronca em mim. Naquele dia, os venezuelanos haviam sido obrigados a adiantar o relógio em 30 minutos para sempre, ajudando o dia a ser mais largo. Era mais uma medida desesperada do governo para evitar o colapso total de energia do país. Hoje, quase toda a Venezuela — menos a Grande Caracas — sofre com 4h diárias sem luz. Segundo Maduro, a culpa é do El Niño, esse fenômeno que sempre existiu e sempre existirá, dizem os humanos.
No palco improvisado em frente ao Palácio de Miraflores, sede do governo do país onde trabalhadores lutam por um mínimo mensal de 15 dólares, o homem que nem de longe tem a oratória — nem a popularidade — do seu antecessor, Hugo Chávez, contava uma história mais impressionante que outra aos ouvidos de um forasteiro. Ali ele podia tudo, estava cercado apenas por correligionários. Atrás do presidente, havia um cordão visivelmente desatento do que parecia o núcleo duro do governo. Vez por outra ela apontava para alguém da barreira e contava ao público como o ajudou em determinada medida. Palmas, muitas palmas.
Ao lado de Maduro, estava a “primera combatiente” — é assim que ele se refere à esposa — e alguma crianças; e em pontos diferentes do palco, militares. Olhando para os senhores cujos coturnos estavam à altura dos meus olhos, confesso que imaginei que o dia e o local eram ideais para um golpe. Felizmente ninguém teve essa idéia.
Diante de Maduro, na platéia, via-se bem mais homens que mulheres. Eram principalmente jovens, muitíssimos de boné e quase todos de camiseta vermelha. A expressão era tensa, mas sobretudo maltratada pelo esforço em sobreviver num lugar onde o termo “crise humanitária” passou a fazer todo o sentido. A falta de recursos para exercer o direito à vaidade e à diginidade pode ser resumida na falta de sabonete, desodorante, pasta dental e até papel higiênico nas prateleiras dos supermercados e das farmácias venezuelanas. Maduro tentava convencer a terra arrasada de que tudo está bem. O que eventualmente não estiver, diz ele, é culpa de agentes externos.
Ouvindo-o atentamente, confirmei o que já sabia: o gigante de 1,90 metro de altura, muito mais gordo do que eu imaginara vendo suas fotos ou assistindo a seus discursos, é dessas aberrações que, vistas de longe, assemelham-se à ficção. Ou ao realismo fantástico. Ele sem dúvida colabora para que a velhinha do elevador diga que “esse mundo está de ponta cabeça”, e é o responsável por ouvirmos em qualquer manifestação dessas pouco politizadas na Paulista que “não somos a Venezuela”. Conste: a Venezuela de Maduro também não é a Venezela, melhor cada um cuidar dos seus problemas. Ou talvez se colocar no lugar — do sofrimento — do outro.
O que o o 57º mandatório do país com as maiores reservas de metróleo do mundo é capaz de dizer — e de fazer — é tão nonsense, inadequado e prejudicial aos que vivem sob sua caneta — ricos e pobres –, que a primeira reação ao ouvi-lo é: como esse homem chegou aí?
Há muitas respostas possíveis, mas seja qual for a mais correta, ou menos apaixonada, uma coisa é certa: se não há saída para o convívio público fora da política, é honesto dizer que a política parece, cada vez mais e mundo afora, um beco sem saída. Lá e cá.
Diante de mim estava um ser-humano que foi capaz, em três anos, pavimentar e destruir sonhos coletivos. Para mim, do ponto de vista da capacidade humana, era fascinante. Radicalmente comparando, era ter idéia de como, apesar de todas as barbaridades, Hitler conseguiu domar a Alemanha.
Nos últimos dois anos, sob Maduro, a Venezuela experimentou o tipo de explosão que raramente ocorre em país de renda média como ela, exceto em caso de guerra. As taxas de mortalidade estão disparando; um serviço público depois do outro está entrando em colapso; inflação de três dígitos [720% este ano] deixou mais de 70% da população na pobreza [76%, para ser exato]; uma onda incontrolável de crime mantém as pessoas trancadas em casa à noite; consumidores têm que permanecer na fila por horas para comprar comida; bebês morrem em grande número por falta de remédios simples e baratos e de equipamento nos hospitais, assim como os mais velhos e os que sofrem de doenças crônicas. Esse é um bom resumo sobre a Venezuela de 2016, escrito por Moisés Naïm e Francisco Toro, em artigo para “The Atlantic” e citado pelo jornalista Clóvis Rossia, da Folha de S.Paulo.
Em cerca de 1h30 de discurso, o presidente eleito para suceder Chávez — que teve seu mandato interrompido pelo câncer, mas antes de morrer pediu que os venezuelanos votassem em Maduro se algo acontecesse com ele — em 2013 para um mandato de seis anos, agiu como sempre: não reconheceu nenhuma crise e não admitiu qualquer erro do seu governo. No script, muitos ataques. Detonou empresários — “a oligarquia que nunca mais vai voltar para esse palácio” ou “quem produz nesse país são os trabalhores, não os oligarcas” –, os Estados Unidos — “imperialistas, imperialistas, imperialistas”–, a oposição — “golpistas” –, e qualquer um e todos que pensam diferente dele.
Maduro parou algumas vezes para pedir mais atenção ao público, que diversas vezes entoava gritos de ordem ou o aplaudia durante sua fala. Num momento de catarse, conclamou todos a fazerem um juramento de “defesa do país”, já que, segundo ele, “há iminência de um ataque interno patrocinado pelo eixo Madri-Estados Unidos”. Depois, foi além: “Eu não queria alarmar vocês, mas temos dezenas de detidos e ontem detivemos pessoas no topo de alguns edifícios” próximos ao local onde deveria acabar a passeata de hoje”. Ele anunciava aos milhares de presentes e em rede obrigatória de rádio e televisão que sofreria tentativa de assassinato. O clima ficou ainda mais pesado.
O problema é que cada vez menos gente — os de carteira cheia ou vazia, os de qualquer plumagem ideológica — faz ouvido de mercador ao que diz o presidente. A esquerda “chavista” original, ouvi de muitos dos seus apoiadores, dá sinais de cansaço ao ver que palavras e realidade cada vez menos se cruzam em Maduro.
“Outra vez, o governo fala de guerra, de invasões, de perigos estrangeiros, comportando-se como a criança que fez estragos na cozinha e acusa a irmã, a empregada (…). Que estranho esse governo que nunca se equivoca, não retifica nada, ao contrário, reafirma os decretos e condutas que todos veem que não funcionaram”, li numa crítica esquerdista ao truculuento mandatário de 58 anos.
Ao que o bom-senso e a legalidade indicam, somente o referendo revogatório daria aos venezuelanos a chance de escolher um novo governo capaz de tentar condutas que, de repente, funcionem. Maduro já desqualificiou os deputados que o propuseram e o trâmite do referendo. Ele flerta com a ditadura.
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