São Francisco é uma das cidades imperdíveis dos Estados Unidos, a mais bonita por onde andei lá.
Em outubro de 2014, deslumbrei-me ao revisitá-la por 10 dias, subindo e descendo suas ladeiras, perdendo-me no seu mercado de caranguejos gigantes, desviando de pelicanos que passavam rasantes sobre a minha cabeça e olhando os lobos do mar tomando banho de sol, assistindo imóvel a uma discussão dos seus moradores de rua, atento e distraído para ver ou ser surpreendido com suas belezas naturais e com intervenções humanas — quase — tão bonitas quanto.
Em tempos do inacreditável Donald Trump, São Francisco, a cidade grande mais rica do estado mais rico — a Califórnia — do país mais rico do mundo é um bastião de tolerância.
Em um vagão do Bart — com se chama o metrô de lá –, ao meio-dia, não foi difícil ver uma velhinha de cabelo pintado com cor inimaginável ao lado de casal gay de ursos, alguns latinos cheios de instrumentos discutindo sobre o atraso na obra e alguém falando sozinho numa cidade apinhada de doentes mentais perambulando.
Ontem fui surpreendido com uma notícia sobre a qual não tinha idéia. Numa excelente reportagem do New York Times na edição de domingo da Folha de S. Paulo, conta-se que a criminalidade por lá anda alta, e a reação a como contê-la divide a cidade.
Dica antes de seguir: todo domingo, a Folha publica matérias do Times em português. Além da diversidade de temas, a profundidade com o qual são tratados e maneira deliciosa como são escritas, para mim fazem da leitura imperdível.
Leia a matéria que deu origem a esse post:
Do New York Times
SAN FRANCISCO — Pela janela do seu apartamento, ao pé do célebre zigue-zague da rua Lombard, Judith Calson em duas ocasiões viu ladrões arrombarem carros e furtarem tudo o que foi possível. Viu estrangeiros chorando após terem dinheiro e passaporte roubados. Ela ainda estremece quando lembra o caso do turista tailandês que foi baleado ao tentar evitar o roubo de sua câmera.
E esse é apenas o balanço do último ano.
A cidade, conhecida por sua tradição política de empatia pelos oprimidos, está agora dividida entre reagir à atual situação com uma aplicação mais rigorosa da lei ou manter a atitude tolerante.
A Câmara de Comércio e o Conselho de Turismo defendem medidas mais duras para melhorar a “condição das ruas”, eufemismo que abrange o problema dos sem-teto, o uso público de drogas injetáveis, a grande população de pessoas com transtornos mentais nas ruas e a mendicância agressiva.
“As pessoas acreditam que todos têm o direito de estar nas ruas. No entanto, acho que há um limite de tolerância para o mau comportamento”, disse Joe D’Alessandro, executivo-chefe da organização turística San Francisco Travel.
Os visitantes querem aproveitar o clima mediterrâneo, passear pelas ruas charmosas e se deslumbrar com a vista para a baía e o Pacífico. No entanto, ao lado dessas paisagens há barracas montadas em calçadas e sem-teto esfarrapados em frente a alguns dos imóveis mais caros dos EUA.
A polêmica sobre como lidar com esses problemas é evidente entre os membros do Conselho de Supervisores, a câmara de vereadores local.
O vereador Scott Wiener, que defende mais rigor legal, disse que seus eleitores o pressionam a agir. “Não sei nem dizer quantas vezes recebi e-mails de mães dizendo: ‘Meus filhos acabam de me perguntar por que aquele homem está com uma seringa pendurada no braço’”, disse.
“San Francisco às vezes é uma zona livre de consequências”, disse Wiener. “Não estou defendendo a lei e a ordem em níveis extremos, mas é preciso haver consequências. Às vezes as pessoas podem precisar passar seis meses na cadeia para pensar no que fizeram.”
Em apertada votação por 6 x 5 no ano passado, Wiener conseguiu aprovar a contratação de centenas de novos agentes para a polícia municipal, um aumento inédito desde a década de 1980.
Do outro lado está David Campos, vereador que descreve a posição de Wiener como “uma abordagem punitiva muito instintiva que é ineficaz e incompatível com os valores de San Francisco”.
Campos e muitos outros evocam o espírito caritativo do santo católico que dá nome à cidade. “Nós vamos criminalizar as pessoas por serem pobres”, disse ele. “Essa criminalização só vai dificultar que elas saiam da pobreza.”
O espírito liberal de San Francisco, segundo Campos, foi se alterando à medida que a cidade passou a se concentrar mais nas atividades empresariais e tecnológicas.
Ele deplora a crescente mentalidade de livre mercado, que descreve como “nade ou afunde”, e que contrastaria com as tradições locais. “Não sei qual San Francisco irá prevalecer”, afirmou.
Dan Edmonds-Waters, recentemente vítima de furtos no seu carro, demonstrou essa capacidade de perdão típica da cidade. Ele disse ter sentido pena dos ladrões que em duas ocasiões quebraram as janelas da sua BMW edição limitada. “Tenho muita solidariedade pelos necessitados da cidade”, afirmou Edmonds-Waters. “San Francisco é uma cidade extremamente cara para se viver.”