Estar em Caracas de 2016 é quase ser personagem de um livro da História Moderna, página 80s, quando lia-se crise do petróleo e se vivia a ebulição política entre duas bandas, para depois um muro ruir deixando escombros, entre ideais e paranóias, para todos os lados. A Venezuela da Revolução Bolivariana de 1999 quer provar que o muro foi reconstruído. Ou que não desmoronou.
Em 2016, 17 anos depois que o presidente Chávez assumiu o poder democraticamente, os seus apoiadores, e os seguidores do atual presidente, Nicolás Maduro — existem muitos chavistas, mas não maduristas –, contam-me aqui a todo momento: “estamos construindo o socialismo do século 21”.
O aviso é reforçado por centenas de frases sobre o regime, sobre “La Revolución Bolivariana” e, principalmente, ditas por Hugo Chávez ao longo dos seus 58 anos de vida. Estão pintadas em muros, fixadas em cartazes, são repetidas pela tv estatal ou pelos jornais governistas. Muita gente acredita que o caminho está sendo trilhado.
Chávez, o líder do movimento, é mais visto que a bandeira da Venezuela. Seus olhos estão espalhados por toda a Caracas, e podem ser interpretados de várias maneiras: “estou de olho, não desviem a rota”, ou, simplesmente “estou com vocês” são duas das mais prováveis motivaç
Reflito: numa democracia real, onde tão importante quanto o respeito às leis é o respeito às diferenças, o culto à personalidade patrocinado pelo estado tem espaço? Cada país, uma história.
Maduro na berlinda
Nesta nova empreitada do “governo del pueblo”, um novo muro não deve cair. Mas, em 2016, um presidente pode estar prestes a desabar.
Nicolás Maduro, eleito há pouco mais de três anos para um mandato de seis, é cada vez mais impopular entre os pobres — foi difícil encontrar e conversar com apoiadores de Maduro, e acho nunca ter falado com tanta gente, em tantos ambientes diferentes, como nos dias andando por Caracas –, e entre 99% dos ricos — menos os da administração pública –, e pode ter que deixar o Palácio de Miraflores antes do combinado sem golpe, mas por um referendo popular.
A lei que que permite a interrupção do mandato é do mesmo ano que se iniciou “a Revolução”, quando foi aprovada a mais recente Constituição da Venezuela. Redigida no início do governo Chávez, eleito com a bandeira de romper com “os interesses do setor oligárquico”, a Carta previu mudanças sociais profundas — cumpridas, pode-se dizer hoje, já que a Venezuela de fato melhorou todos os indicadores sociais muito acima da média latino-americana. Também mudou o nome do país, que passou a se chamar República Bolivariana da Venezuela — antes era Estados Unidos da Venezuela –; e aumentou o mandato presidencial de cinco para seis anos, com possibilidade de uma reeleição. No pacotão profundo de mudanças, a lei maior do país também deu aos venezuelanos o direito de retirar seus presidentes do Palácio de Miraflores antes do final do mandato por referendos.
Em 2004, regra já em prática, o popular e carismático Chávez foi posto à prova, e 60% dos que saíram de casa votaram para que permanecesse no poder. Depois, reeleito, Chávez enviou pedidos de emendas às regras estabelecidas, e em 2009 estava aprovado o fim do limite do número de vezes que o presidente poderia se candidatar à reeleição. Poucos democratas defendem essa medida.
Quando cheguei a Caracas, numa terça-feira de abril, encontrei a cidade num dia ainda mais tumultuado que o normal. Sim, Caracas é igualzinha a qualquer outra monstrópole latina: tráfego parado, metrô superlotado, gente tentando sobreviver como dá. E muita, mas muita tensão no ar. A resposta a qualquer pergunta na rua é “não”, e todo mundo parece desconfiado.
A pobreza está exposta nos barrios — as favelas de lá — que circundam toda a cidade envolta por montanhas. Também no visual maltrapilho dominante — imagine se um lugar onde faltam desodorante, pasta de dentes e papel higiênico é capaz de suprir a vaidade feminina na terra das misses…Caracas não é suja, mas desbotada e sem manutenção.
Nesse cenário gris, dezenas de milhares de venezuelanos estavam fazendo fila dizer que não querem mais Maduro no poder. Para que consigam tirá-lo, eles precisarão sair de casa três vezes, e torcerem para as regras constitucionais sejam obedecidas.
O processo é relativamente simples: 1- os partido(s) políticos(s) opositores pedem ao Conselho Nacional Eleitoral — o correspondente ao nosso TSE — que disponibilize formulários oficiais para que os eleitores possam colocar sua assinatura e polegar. 2- Na primeira fase, basta 1% de assinaturas dos eleitores do país, colhidas em até 30 dias, para que o processo vá adiante. 3- Se colhidas, os eleitores precisam voltar a assinar, desta vez com obrigação de de passar dos 20% dos eleitores do país — 4 milhões de cidadãos em 2016. 4- Vencida essa etapa, todos são convocados a votar pela continuidade ou não do mandato. Para que o presidente deixe o cargo, é necessário um voto a mais do que os que elegeram o presidente. No caso de Maduro, cerca de 7,6 milhões, o número de eleitores que o apoiaram em 2013 — quando ganhou a eleição contra o seu maior opositor, Henrique Capriles, com 50,6% dos votos válidos.
Se na teoria tudo parece fazer sentido, na prática há muitos problemas. Segundo a regra, se o referendo acontecer até o fim do terceiro ano do governo — metade do mandato — e a população votar pela saída do presidente, convoca-se nova eleição. Caso o referendo seja realizado no quarto ano em diante e o presidente sai perdedor, assume seu vice.
Obviamente, a oposição e quem vota pela saída de Maduro não quer a segunda opção, mas o presidente, um colombiano radicado na Venezuela, tem feito de tudo para atrasar o processo. Isso num país onde a Justiça Eleitoral é conhecida por ser chavista. Maduro já avisou que vai pedir a conferência das assinaturas uma por uma, e que não há prazo oficial para que a recontagem termine.
Para se ter noção da criatividade do presidente, basta dizer que ele acusou manifestantes que marcaram protesto na última quarta-feira — dia que Dilma foi afastada temporariamente do cargo — de pretenderem realizar confrontos violentos com a polícia para desviar a atenção do afastamento da colega brasileira. O que ele fez? Sitiou a cidade para abafar o começo dos protestos.
É inegável que Nicolás Maduro não convive bem com a democracia, mas ao menos é presidente de um país que criou uma regra a ser pensada por nós, o país cuja presidente deve perder o mandato não porque cometeu um crime previsto para que fosse para casa, mas por fragilizar a economia e ser impopular.
Uma possível opção para não mancharmos nossa História seria acabar com a reeleição, estender o mandato a seis anos e permitir um referendo no quarto ano de mandato, juntamente com a votação de prefeitos e vereadores.
Aí sim veríamos o exercício direto do democracia, quanto o povo — e não deputados e deputadas em nome das suas famílias –, poderiam mandar seus governantes mais cedo para casa.