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Diários de Caracas [4]: A fila do básico na Venezuela

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É hora do almoço. Em uma fila de uns 20 metros ao lado de um supermercado em Chacao, bairro nobre de Caracas, muita gente espera alguma coisa que não sabe o que é. A única certeza é de que precisam do básico, que pode aparecer a qualquer momento. Papel higiênico e arroz, por exemplo.

“Cheguei há seis horas e estou esperando algum caminhão estacionar com farinha de trigo”, diz José, 49, o primeiro da fila. Apesar da humilhação, ele veste Venezuela na cabeça.

José, o primeiro da fila

O caminhão branco sem identificação que traz alguma esperança está lacrado e seu motorista e o ajudante desaparecidos. Por isso, sobram especulações. “Disseram que é molho de tomate”, disse uma senhora. “É trigo”, diz outro. O hino do país toca retumbante na rádio de um carro velho estacionado. Aqui o ritual se repete em todas as estações ao meio-dia e à meia-noite.

O motorista reaparece. Sério, o homem de expressão cansada e uns 50 anos revela o suspense: “É papel higiênico!!!”

A notícia corre a fila, que a essa altura já tem o dobro de tamanho e a metade de organização. Entre o alívio de saber que possivelmente comprarão algo e a tensão para saber se a quantidade que será descarregada será suficiente para todos, nota-se um movimento de trocas de mensagens e chamadas telefônicas. A rede de contatos serve para chamar mais gente a se juntar à cola — (fila) a palavra mais venezuelana que existe, brincam os locais –, já que há um limite de quantidade de produtos que cada pessoa pode levar. E há ainda mais drama: a permissão para sair com os produtos depende do último número do documento de identidade do comprador. Clientes com documentos com final 0 e 1, por exemplo, têm permissão para comprar produtos regulados na segunda-feira.

Um soldado da temida — por corrupta — guarda nacional, sempre desconfiadíssimo, acompanha o movimento sem quase piscar os olhos. Assim mesmo, o suborno a funcionários do Klasse corre solto para os que queren furar a fila ou levar mais do que o permitido.

Por que a espera?

É difícil para um estrangeiro entender o porquê das filas, já que dentro dos supermercados há espaço, produtos, e caixas muitas vezes vazios. O que mais chama a atenção é a quantidade de frutas e verduras frescas, as mais coloridas, bonitas baratas que já vi.

Mas um olhar mais atento pelos corredores, ou uma necessidade mais imediata, bastam para se dar conta da realidade: sobra o supérfluo e falta o básico nas prateleiras. A lista da fila tem dimensão e nome exatos. Chama-se leite, milho, azeite, farinha de trigo, açúcar, café, desodorante, sabão em pó, papel higiênico, pasta de dente, e mais 32 produtos cujo preço e distribuição são totalmente controlados pelo governo. Se comparados aos produtos foras da lista, são muito menos custosos, ou melhor: os únicos possíveis de serem comprados num país onde o salário mínimo são inacreditáveis 15 dólares mensais. Um quilo de arroz, por exemplo, custa 4OO bolívares (R$ 1) e de sabão em pó menos ainda.

Por que faltam alguns produtos, e outros não, perguntei-me abismado. A resposta é complexa, mas há boas pistas. Empresas privadas de setores específicos, nacionalizadas a dedo, e que passaram a contribuir com muito menos alimentos que antes, é uma delas. A péssima relação entre empresários e o poder público, outra. Desde Chávez, os empreendedores do país são vistos com total desconfiança pelo palácio de Miraflores. Segundo o governo, eles escondem matéria prima, não produzem sua capacidade máxima e entregam a produção a contrabandistas que vendem tudo mais caro que o preço tabelado em troca de propina. Tudo, segundo a tese, para desestabilizar o país, a serviço da oposição e do imperialismo. 

Basta perguntar a qualquer chavista como se pode chegar a uma situação calamitosa de falta de comida e você ouvirá: “a culpa é da guerra econômica” criada pelos empresários.

Opositores discordam da teoria. Para os que me pareceram mais sensatos em suas respostas, o transtorno é causado por outra guerra: a da oferta e da demanda. Significa que quando um preço é criado artificialmente, como no caso da Venezuela, a demanda explode, mas os produtores freiam as máquinas e esperam o momento que produzir volte a valer a pena.

Bachaqueros

Seja qual for o motivo, o caos para comer criou uma nova profissão na Venezuela: os bachaqueros.

São pessoas que se dispõem a passar horas em filas para comprar produtos básicos a preços  a preços regulados e depois revendê-los por até 10 vezes mais caros. Para encontrá-los, basta ir a Petare, um dos bairros mais pobres e perigosos da periferia de Caracas, onde se misturam aos dois milhões que habitam lá e oferecem seus produtos com um olho no cliente e outro na polícia, que aparece raramente para oprimir a revenda. Cercado por belas e calmas montanhas que dão de cara com o céu, Petare simboliza justamente o contrário: um país caótico que parece sem saída. 

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