É incomparável a capacidade de grande parte da imprensa brasileira de se superar. É indisfarçável a farsa, a maneira com que essa gente age sem a menor desfaçatez. Na semana passada, Dilma Rouseff foi a Nova York assinar o acordo sobre mudanças climáticas elaborado no ano passado, em Paris. Era novembro de 2015 quando ela –àquela altura sem o horizonte do impeachment à frente– e mandatários do mundo inteiro estiveram na Conferência do Clima na capital francesa e lá selaram um ‘acordo histórico’ contra aquecimento global.
Não me ocorre ter lido ou visto no império Globo que Dilma houvesse ido para denunciar qualquer coisa, nem que foi renovar seu guarda-roupa na passeando pela Rue du Faubourg Saint Honoré, a mais chique da cidade. Ao que parece em cinco anos de mandato, Dilma é séria. E o assunto clima não está para brincadeira. Dessa vez, a viagem, segundo a Globo, seria por motivos nada institucionais, mas somente pessoais.
Segundo a Globo, o Globo, e todos os tentáculos da empresa que vende palavras embaladas com o nome jornalismo de acordo com seus interesses do momento — já foi a ditadura, já foi o Governo Collor, já foi a privataria de FHC, agora é o impeachment –, Dilma iria a Nova York denunciar um golpe contra o Brasil. Como chegaram a essa conclusão? Muito simples: utilizando-se do artifiício do sigilo da fonte, do jornalismo, os extraordinários repórteres da Globo — não se sabe se um que distribuiu a informação ou vários de caráter precário ao mesmo tempo — disseram ter ouvido que de “assessores do Palácio do Planalto” que o tema do discurso seria golpe. Assessor, em nome do discurso e do anonimato, pode, claro, ser qualquer coisa que se mova, mesmo que seja uma samambaia deslocando-se pelo vento que não existe em Brasília.
O que aconteceu? Segundo a mesma Globo, “a presidente gastou quase toda a sua fala de 8 minutos e 42 segundos com considerações sobre o acordo climático e apenas mencionou a situação política em sua conclusão: “Não posso terminar minhas palavras sem mencionar o grave momento que vive o Brasil. A despeito disso, quero dizer que o Brasil é um grande país, com uma sociedade que soube vencer o autoritarismo e construir uma pujante democracia. Nosso povo é trabalhador e com grande apreço pela liberdade. Saberá, não tenho dúvidas, impedir quaisquer retrocessos. Sou grata a todos os líderes que expressaram a mim sua solidariedade”.
https://youtu.be/fzRxD49APUs
vídeo: estudantes do ensino público de São Paulo também protestam contra a Globo
O estrago previamente medido já estava feito. Por alguns dias, entre Dilma embarcar e fazer seu discurso, os jornalistas ouviram muita gente preocupada com o que era certo que ela diria na ONU, mas nunca disse. No G1, braço noticioso online do grupo, deu-se voz à preocupação: “Os ministros do Supremo Tribunal Federal Celso de Melo e Gilmar Mendes refutaram a tese da presidente, atestando que há base legal para o processo de afastamento que tramita no Legislativo.
Foi possível ler e ver o reforço sobre o desastre do discurso que viria em todos os veículos do conglomerado que tanto mal faz ao país: “Há um equívoco quando [Dilma] afirma que há um golpe parlamentar, ao contrário. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, deixou claro que o procedimento destinado à abertura do processo de impeachment observa os alinhamentos ditados pela Constituição da República”, disse Celso de Mello”.
O excelente Jânio de Freitas, colunista da Folha de S.Paulo, também ajudou no monitoramento do falatório desmedido, tendencioso, e sendo mais direto, criminoso, produzido pela Globo — e também inclusive pelo jornal do qual é articulista. Disse ele: “Dias Toffoli também tem o que dizer sobre o que os jornais disseram que Dilma diria na ONU mas não disse, e por isso os que inventaram que ela diria agora se dizem surpresos. Toffoli: “Alegar que há um golpe em andamento é uma ofensa às instituições brasileiras. E isso pode ter reflexos ruins no exterior”.
Da maneira mais covarde possível, sem nos dar pistas sobre quem foi esse assessor que passou a informação errada que rendeu muita tinta contra Dilma, o jornal foi além, chamando Dilma sim de covarde. William Bonner: Dilma recua e não fala em golpe durante discurso na ONU.
O pior: muita gente acreditou no que ele disse e vai continuar dizendo.
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A mensagem do Andar Andar: A imprensa é uma loja na qual se vendem ao público as palavras da cor que se deseja.