Crônica: Reza mexicana

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Máfia mexicana mata milhares por ano no país que tem tradição de celebrar o dia dos mortos
Tinha cerca de 1,60m e uns 80kg sustentados por um chinelo de dedo velho. A bermuda larga e comprida e a camisa curta o faziam parecer ainda mais gordo e baixo. Era feio, muito feio, atrapalhado pelo bigode largo e mal aparado e pelo cabelo ralo pintado dessas cores que só existem em tinta de cabelo. Estrategicamente posicionado à porta do banheiro masculino de La Santanera, uma das melhores boates de Playa del Carmen, a 60 km de Cancún, no Caribe mexicano, era o rei do pedaço numa noite de corpos deslumbrantes à mostra e música eletrônica, senha global para o alto consumo de drogas.
Representante legal do “chapo”, o traficante de drogas mais procurado do mundo, preso na última sexta-feira em Sinaloa — estado onde nasceu e é idolatrado pela população local por ser o violento e caridoso Robin Hood pós-moderno –, estava ali protegido pelo seu exército de bandoleiros e por parte do estado podre do México. E vendendo todo tipo de droga com estoque ilimitado.
Os donos da boate fingiam que não era com eles para o bem das suas integridades físicas. Muitas das discotecas lavam dinheiro apurado ali no banheiro, ficando a contabilidade toda em casa.
Os clientes, acostumados com a dinâmica, não ousavam buscar diversão sintética em outra fonte que não fosse a indicada pelo risonho homem, sob pena de serem coagidos violentamente por outros do bando que circulavam pelo local sem dar muitas pistas. A polícia, no México armada com metralhadoras agressivas que contrastam com a fala mansa, a gentileza e o jeito quase subserviente do caráter mexicano — num castelhano cantado, cheio de gírias e expressões carinhosas a seus interlocutores –, passava longe dali.
Segundo a imprensa do país, acredita-se que 90% da polícia, do judiciário e da própria imprensa sejam corrompidos pelo poder da droga. Droga, aliás, que é o produto mais exportado do país inundado pelo petróleo e pela corrupção.
O México está completamente afundado no tráfico numa dramática situação insolúvel: seus vizinhos do norte consomem droga como nenhum outro país do mundo, e cheiram, fumas e se picam cada vez mais.
El "Chapo" (baixinho) Guzmán é apresentado pelo exército mexicano depois da prisão, em janeiro
El “Chapo” (baixinho) Guzmán é apresentado pelo exército mexicano depois da prisão, em janeiro
Num olhar um pouco atento em qualquer cidade do país, percebe-se que o prefixo narco entranhou-se no vocábulo dos quase 120 milhões de habitantes que habitam a 13a maior economia do mundo. É tão forte que deu cria à narco música, — tocada inclusive nas rádios locais em vários rincões e que louva o estilo de vida bandido; à narco-moda, na qual botas de bico fino e couro de jacaré desfilam em corpos geralmente rechonchudos protegidos por chapéus que mais lembram o de cherifes norteamericanos e são produtos de desejo; narco-gírias manifestadas em spanglish; e inclusive a narco-arquitetura, facilmente reconhecida pelo exagero de cúpulas e luxúria de gosto duvidoso que se espalham por cidades de todos os tamanhos.
O homem na porta da discoteca, soldado do cartel de Sinaloa, insistia numa cantoria desafinada que anunciava seu cardápio: ectasy, heroína, cocaína, maconha, metaanfetamina. Tudo ali, na polchete, junto a milhares de pesos e de dólares. Livre, debochado.
No México, a geografia do tráfico entre os quatro cartéis dominantes é um tabuleiro dinâmico que se move à base de milhares mortes numa terra desde sempre sem lei. A justiça geralmente é a do tribunal do crime, cujas penas comuns são decapitações, morte por afogamento em ácido, tortura com soco americano. Não há limites para a perversidade nem ninguém se choca mais.
O chaparito — como se diz baixinho no México; “chapo”, para muitos clientes que o acessavam com ar de intimidadade amedrontada — da porta estava mais do que amparado. Em meio ao local de decoração kitrsch-chique no qual dividiam espaço artigos de luta livre, um jaguar de cerâmica iluminado, entre outras referências locais, um busto de neon de cerca de 4 metros quadrados o protegia. Era a imagem de Maverde, o padroeiro mexicano dos traficantes, que por um segundo me fez lembrar que estava no país mais católico do mundo. E onde o crime não precisa se confessar.
 
* Essa crônica foi publicada originalmente no dia 10/01/16, dois dias depois da prisão do mexicano Joaquín “El Chapo” Guzmán, o maior traficante de drogas do mundo. Resolvi compartilhá-la no blog por achar que deve fazer parte da cultura viajante de quem vai ao México.
Em breve, dicas sobre o melhor que vi no país.

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