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A viagem (quase) impossível

Caminhão de carga colorido, como quase tudo na Índia
Caminhão de carga colorido, como quase tudo na Índia

A viagem à Índia foi inesquecível por confirmar radicalmente a existência de vários mundos dentro deste globo.
Se é fato que não escolhemos onde nascemos; e que pouca gente tem ânimo ou oportunidade (coragem?) de se permitir mudar de cenário durante a jornada da vida, confimei que somos magicamente adaptáveis a tal ou qual realidade. De lugar chocante — por completamente diferente — a corriqueiro, foram poucos dias para me sentir um local.
Os 20 dias pelo país de 1,3 bilhão também foram estratégicos para minha classificação de pessoas. Explico: Depois que voltei a Madri, onde habito (não consigo dizer mais moro) a maioria do ano, ao comentar sobre meu mais recente destino, tenho escutado dois tipos de reações: “foi fazer o que lá?”; ou “que maravilha, adoraria (ou adorei) ir à Índia”. A senha-Índia servirá, a partir de agora, para enquadrar os humanos: insossos x sedentos; fechados x curiosos; provincianos x cosmopolitas (para mim, estar aberto ao novo é o verdadeiro sentido de cosmopolita).
Sempre que me deparo com uma reação de nojinho sobre a viagem, penso em presentear o careteiro com o genial “El Viaje Imposible”. É um livro fininho, mas cheio de boas história pra contar. Lá, o autor traduz 100% meu sentimento: apesar de todas as possibilidades de mobilidade — pela qual hoje tratamos o mundo como aldeia global–; e da facilidade cada vez maior em se dar conta das milhares de possibilidades do planeta — 10 minutos num portal de notícias são suficientes –, optamos cada vez menos por viagens românticas: aquelas estranhas ao nosso contexto econômico, social, cultural, e tudo mais que nos é corriqueiro, previsível, confortável.
Pouca gente sai de casa livre para arriscar, ou se permite sorrir ou extasiar-se diante das mais íntimas curiosidades do local visitado. Na verdade, até a escolha sobre aonde ir parece ser cada menos individual e abstrata; e cada vez mais dependente se o destino está ou não na moda. Destino da moda, aliás, é aquele antes “desbravado” por celebridades que se casam ou posam para selfies lá (alô Luciano Huck, alô Caras) patrocinadas por empresas; ou aqueles bombardeadas na telenovela em um anúncio publicitário subliminar.
As pessoas, oh, céus!, viajam para confirmar a existência daquilo que esperam encontrar, um tédio só. Os hotéis onde se hospedam, de uma rede destas que dominam o mundo, poderiam ser em qualquer lugar do planeta, de tão pastel. Ao ligar a TV do quarto, oposta à gravura de Romero Britto na parede, os mesmos programas sobre os quais reclamava da qualidade — e assistia — ao voltar do labor, e de que tanto queria desconectar Lá em baixo, a piscina esterelizada, lotada, diante da areia e do mar onde poucos arriscam “se sujar”. Despreocupados, os aventureiros visitantes confirmam o encontro com o hábil guia que os levará aos locais fotos que justicarão o “êxito”da viagem aos amigos.
A viagem impossível, diz Marc Auge, não é a da Indústria do Turismo, que quadricula o mundo e o vende como produto, mas aquela que nunca faremos mais: rumo ao desconhecido e ao que há de mais espantoso — e engrandecedor — para nossos olhos e nossa alma: definirmos quem somos (ou queremos, ou podemos ser) através do reflexo do outros.
Talvez, para voltar a viajar (com licença da pretensão do ensinamento), basta começar pertinho de onde vivemos, mas reaprendendo a ver. Atreva-se.

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