Resolvi radicalizar segundo os manuais de turista. Era maio de 2015, e numa viagem de um mês à Rússia e à Índia, fui com uma mão na frente e outra atrás. E uma sacola nas costas. Sem roteiro definido, sem hotéis reservados, sem bilhetes de avião impressos e nem passeios comprados e guardados numa pastinha dessas verdes de elástico. Queria radicalizar de liberdade (nunca suficiente), para mim parte do significado de viajar.
Nem sempre foi assim. Já fiz exatamente o contrário: roteiro planejado, vôos, hotéis e passeios impressos dentro da onipresente pastinha. Não lembro apenas de ter aderido a alguma excursão: primeiro dia, livre; segundo dia, saída à 8h do hotel. Sempre achei rigidez demais para mim.
Com a quilometragem viajante, tive certeza: quanto mais se planeja, mais se perde a essência de viajar, que é simplesmente atirar-se ao desconhecido. Ser turista é diferente de ser viajante. Uma condição para mim não é melhor do que a outra, que fique claro. Mas, como compartilho em seguida, para mim são coisas diferentes.
O turista quer descansar a mente; o viajante ocupá-la com o máximo de conhecimento e entendimento do mundo. O turista quer conforto e previsibilidade; o viajante, assumir riscos e se espantar. O turista quer boas fotos; o viajante as melhores recordações. O turista vibra com boas compras; o viajante adora bagagem leve, para ele sinônimo de liberdade. O turista tem medo da solidão de viajar sozinho; o viajante considera a melhor forma de ir.
Depois de muitas partidas, estou seguro: para desbravar o novo, há de tratá-lo como novo. Antecipar os possíveis percalços e decidir antes da partida sobre encará-los ou não, para mim é perder o fio da meada andarilha.
“Por que viajar para ter dores de cabeça?”, diria alguém saindo de férias. Para quem um viajante responderia: “abrir a cabeça dói mesmo, há de se pensar o que está diante dos olhos”.
Pois bem, voltando à viagem. Tinha decidido conhecer esses dois por países, cujas origens, passado e presente foram e são completamente diferentes, e cujo futuro, apesar disso, dá sinais de um protagonismo comum no xadrez mundial.
Li em fontes diferentes o máximo que pude sobre a história da ex-URSS e da pátria de Gandhi. Viajar sem entender minimamente a história do lugar impossibilita de saber o porquê das coisas estarem ou não ali, e sobretudo ter pistas do porquê as pessoas são como são.
Sobre a Índia, soube que é a próxima China, a nova locomotiva do planeta. Mais de um bilhão de bocas para servir, mão de obra barata, tradições que justificam tudo, castas incomunicáveis, religiosidade em todos os atos, desigualdade brutal e pobreza extrema. Li artigos de jornais, comprei um Lonely Planet — sempre um ótimo introdutor da realidade local.
A Rússia, maior país do mundo, sempre teve pouca simpatia do resto do planeta, era a minha impressão. Saída de um século de guerras e de uma mudança profunda de regime, tinha muita curiosidade em saber o que se passava na terra de temperatura sempre fria e povo mais ainda. E de um presidente controverso.
Com tantas diferenças entre os dois países, lembro-me de compartilhar outro ensinamento: quanto mais o destino embaralhar sua cabeça, for mais distante da sua realidade, mais realizado você volta para casa. A partir da referência do outro, você se define melhor no mundo. Esta viagem era um bom curto-circuito cultural.
Informei-me apenas sobre os vistos necessários — para Rússia basta o passaporte para entrar, e na Índia é necessário tirar um visto eletrônico que custa menos de 50 dólares. Estava um pouco tenso para entrar em Moscou, com um saudável frio na barriga. Os russos não são conhecidos exatamente por sua simpatia, e certamente os primeiros que viria — os do controle de imigração do aeroporto de Vnukovo — deveriam ser como são os agentes de imigração em qualquer país do mundo: uma amostra negativa da população local. Dê poder a um ser-humano e saberá quem ele realmente é…
Tive sorte. Talvez porque o agente não falava bem inglês, ou estivesse a horas sem comer e quisesse se livrar de mim, ou tenha ido com minha cara, poucos minutos depois já estava com minha mochila no balcão de informações pedindo referência sobre onde ficar em Moscou. Perguntando sobre meu perfil de hospedagem pela corada e fechada senhora, disse: o mais longe possível da zona turística.
Não era arrogância nem desprezo pelos estrangeiros, mas aprendizado: a vida real das cidades e das pessoas dali, as quais você quer observar, interagir e tomar como referência sobre a personalidade do lugar, não está perto das lojas de souvenirs nem dos hotéis de luxo. Esses lugares, cada vez mais iguais no mundo, são isso: lugares iguais no mundo, onde turistas frequentam algum Starbucks para compartilhar suas fotos e dizer que está tudo maravilhoso.
A conversa fluiu sem caretas, o que descobri depois (fazer caretas) ser uma característica dos russos quando há ruído de comunicação. Eles também não fazem muita questão em se comunicar, é verdade. Uma coisa, porém, é certa: não falar o idioma local prejudica a troca de idéias com locais — na Rússia pouca gente fala inglês –, mas nunca deixe de de ir por conta isso. Por um motivo simples: nossas necessidades básicas — beber, comer, dormir, achar o banheiro — sempre podem sem indicadas por ruídos ou gestos universais. E mais do que isso: de uma hora a outra, você reaprende a se comunicar fixando o olhar nos olhos dos interlocutor, que podem resultar extremamente eloquentes. Você já se deu conta to tanto que comunicamos sem palavras? Uma viagem o lembrará disso.
Cheguei ao meu simpático albergue sob chuva e um calor de 15ºC. Sim, calor, já que a temperatura média anual da cidade é de 5ºC. Resolvi ficar num quarto compartilhado para quatro pessoas, mas era o único na cômoda habitação.
De volta à recepção, puxei conversa com o recepcionista — recepcionistas de hostels em geral adoram conversar, faz parte da cultura deste tipo de hospedagem. Perguntei sobre o desfile que (vi no metrô a caminho do hostel) haveria para comemorar a vitória na Segunda Guerra, sobre Pútin, sobre o tempo agradável, sobre o que é imperdível saber e ver em Moscou. Ouvir as informações de um local é a forma mais valiosa de começar a de fato de situar. Pergunte tudo que quiser saber, não tenha vergonha. Lembre-se que verá seu interlocutor poucas vezes na vida. Anotei no mapa alguns lugares, fui me perder no metrô da cidade com algum rumo, mas sem nenhuma obrigação.
Obriguei-me a algo quase impossível: sair sem o smartphone para não ser fisgado pela tela e pela vaidade de posts e de fotos. Não queria fraquejar com um “Boa Tarde, Kremlin” no facebook, ou “Direto da Praça Vermelha” no instagram, mas deixar para trás os vínculos, os vício, e tentar captar o máximo diante de mim. Fraquejei várias vezes.
Apesar disso, sei que concentrar-se nos arredores, na pessoas, nos cheiros, nos estímulos do lugar, é cada vez mais difícil e necessário para entender realidades cada vez mais complexas. Ou se está em outro lugar ou não se está em outro lugar. Não existe meio termo.
Assim, tentei seguir pelos 24 dias de andança. Assim, voltei para casa com a certeza de que cumpri minha missão viajante.
Contarei tudo que vi na Rússia e na Índia aqui no blog. Espero que goste.