Ato simbólico: Obama troca carta com cubana

Sem celulares inteligentes, quase sem internet, sem PlayStation nem tablets, assim deve ser assim a vida dos cubanos em 2016. Era em 2004, quando o mundo ainda não estava viciado em smartphones, mas a internet já começava a influenciar a maneira com a qual nos relacionamos com a realidade e com os outros, impondo-nos um ritmo de vida alucinante. 

Crianças jogam futebol próximo ao Malecón de Havana.
Partida entre crianças cubanas: jogadas fora da tecnologia

Estive em Cuba entre maio e julho de 2004, quando estudei Cultura Latinoamericana na Universidade de Havana. Àquela altura, como em quase toda a década — até a chegada de Obama ao poder em 2009 — a relação entre os dois países era péssima. Os governos de Fidel Castro e George W. Bush trocavam acusações. De um lado, cresciam as notícias de financiamento dos EUA para que grupos internos tentassem desestabilizar a economia da Ilha; do outro, mais e mais acusações de afrontas aos direitos humanos por parte do governo de Havana.

Eu, Olha e Gerônimo, minha família em Havana.
Gerônimo e Olga: família cubana

Como qualquer cubano, informava-me das últimas vendo os canais de tv estatais, num países onde as novelas da TV Globo fazem muito sucesso — nesta época, estava no ar ” A Muralha” — lendo os mal diagramados jornais da Ilha, cabendo ao Grama “órgão oficial do Partido Comunista” as notícia de primeira mão do regime, ou ouvindo os informativos da rádio Reloj ou da rádio Rebelde, entre muita salva e merengue.

As notícias, a qualquer dia e a qualquer gora, tinham a mesma fonte de informação: a sede do Partido Comunista. Em Cuba, não há imprensa, que, como diz Millôr, “é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”. A única oposição ao noticiário era a energia que, racionada em Cuba, caía entre uma fala e outra de Fidel.

Na Cuba de 2004, a conversa com o mundo era quase totalmente feita por cartas, censuradas a depender da origem e do destino. Uma chamada telefônica para o Brasil, quando possível, era feita de hotéis e custava tabelados seis dólares o minuto. O acesso à internet era limitadíssimo, também realizado em hotéis luxuosos monitorados pelo governo. Pagava-se sete dólares por minuto para você saber que quase todas as páginas, de notícias a chats, eram bloqueadas.

Doze anos depois, é emocionante saber o que aconteceu na semana passada, quando uma cubana de 76 anos que convidou por carta Barack Obama para um café em sua casa, em Havana, disse estar emocionada com a resposta do presidente, uma das primeiras correspondências enviadas diretamente dos EUA para Cuba em mais de meio século.

Segundo a Folha de S.Paulo, em 18 de fevereiro, Ileana Yarza escreveu ao presidente afirmando que “não há muitos cubanos tão ávidos quanto eu para encontrá-lo em pessoa”, ao que Obama respondeu “com esperança, terei tempo para tomar um café cubano em sua casa”.

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A cubana Ileana e a carta do presidente americano. Países se aproximam.

O americano está em Cuba desde ontem para uma visita.

A resposta a Ileana voou para Cuba na terça (15), e é uma das primeiras cartas a cruzar para o país desde a revolução cubana de 1959. A Casa Branca já divulgou o conteúdo da troca de mensagens. A cubana disse estar “encantada” com Obama e seu “cavalheirismo”.

Veja a carta de Ileana na íntegra:

Senhor Presidente,

Eu ouvi ontem à noite na Telesur –não foi pela rede cubana de notícias– que o senhor visitará Havana em março. Eu não poderia estar mais feliz em ouvir essa notícia.

Um presidente americano finalmente tomando um passo tão necessário, o segundo melhor depois de ter admitido abertamente que o cruel embargo de meio século a essa pequena ilha, tão amada, paciente e resiliente, não funcionou. Nós cubanos acreditamos que [o embargo] se trata de uma página ruim na história e geopolítica dos EUA. Me desculpe por dizer isso…

Querido presidente Obama: eu acompanho sua carreira política desde que estava concorrendo ao cargo pela primeira vez. Eu brindei à sua vitória no/com o escritório da CNBC em Havana naquela noite gloriosa. Também comemorei com meus amigos em casa à sua reeleição. Eu gostaria que houvesse uma terceira vez [à frente da Casa Branca], talvez um dia…

Eu já escrevi muitas vezes ao senhor, me apresentando. Também já o convidei a tomar uma xícara de café cubano em minha casa em Vedado, se e quando o senhor finalmente viesse.

Por favor, por favor, venha me visitar. Dê a essa velha senhora de 76 anos o presente de encontrá-lo pessoalmente. Eu não acho que haja muitos cubanos tão ávidos quanto eu a encontrá-lo em pessoa, não pelo fato de ser uma importante personalidade americana, mas por ser um charmoso presidente cujo sorriso aberto conquista corações.

Eu peço que, por favor, entenda o quão ansiosa eu estou para esse encontro. Eu também adoraria se viesse com sua maravilhosa e encantadora esposa. Deus abençoe a você, meu filho, e também a sua família.

Ileana R. Yarza.

Ao que Obama respondeu:

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Obama redige primeira carta direta a Havana em 50 anos

Querida Ileana:

Obrigado por sua palavras gentis. Eu agradeço ao seu apoio durante esses anos, e espero que essa carta –que chegará a você através da primeira mala direta [transportada por avião] entre os Estados Unidos e Cuba em 50 anos– sirva como uma lembrança de um novo caminho na relação entre as nossas nações.

Eu estou ansioso para visitar Havana para incentivar essa relação [entre os dois países] e colocar em evidência nossos valores em comum –e, com esperança, terei tempo para tomar um café cubano.

Atenciosamente,

Barack Obama

E quem disse que só existe refugiados na Síria no noticiário internacional? Resta-nos torcer para o gesto simbólico e a visita signifiquem vida melhor para os heróicos cubanos.

ps.: nos próximos dias, escreverei vários textos sobre Cuba aproveitando a ida histórica do presidente Obama

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